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Maria Fernanda Lemos, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU), atuou como coordenadora e autora-líder do capítulo América do Sul e Central do WG2 / AR6/ IPCC
Maria Fernanda Lemos apresentou resultados do AR6 na COP 27 - Foto: arquivo pessoal
Urbanista e Planejadora Urbana, a professora Maria Fernanda Campos Lemos, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU), atuou como coordenadora e autora-líder do grupo 2 (WG2), no âmbito do relatório 6 (AR6) do Intergovernmental Panel on Climate Change, lançado em março de 2022 e apresentado durante a COP27, em novembro de 2022 (IPCC).
No WG2, que se dedicou ao tema impactos, vulnerabilidades e adaptação, Maria Fernanda integrou o seleto grupo de brasileiros que representaram o país no ciclo 6 do IPCC. Figurou, ainda, como coautora do Summary for Policy Makers – documento aprovado pelos países membros na 55th Session of the IPCC and 12th Session of Working Group II – e do Summary for Urban Policy Makers, relatório elaborado por autores dos grupos 2 e 3 que trabalham com cidades, também lançados na Conferência.
Sobre os desafios da adaptação de cidades para a mudança climática e a complexidade da elaboração dos relatórios, a professora conversou com a assessoria de comunicação da Vice-Reitoria para Assuntos Acadêmicos (Ensino e Pesquisa).
Assessoria de Comunicação VRAc - Como surgiu a oportunidade de se juntar ao grupo de trabalho do IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC)? Que pesquisas realizava à época? Como se dá o trabalho do relatório?
Maria Fernanda - Em 2017, o IPCC começou a selecionar autores do mundo inteiro para os trabalhos do Assessment Report 6 (AR6). A seleção se inicia no país de origem dos autores (que, no Brasil, são voluntários) e é feita pelo Itamaraty, em parceria com o MMA. Os órgãos encaminham os nomes selecionados para o IPCC realizar a seleção final e alocação dos cientistas em diferentes capítulos e funções dentro dos três grupos de trabalho: o primeiro avalia o conhecimento existente sobre ameaças climáticas; o segundo, sobre impactos, vulnerabilidade e adaptação; e o terceiro, sobre mitigação.
Os coordenadores de capítulo também são autores do relatório principal, em seus respectivos capítulos, e do sumário para formuladores de políticas públicas – Summary for Policy Makers – e o Technical Summary, para técnicos.
Eu fui selecionada como coordenadora do capítulo regional (América do Sul e Central) do grupo 2, e comecei a trabalhar no relatório em 2018. Há anos, acompanho o trabalho do IPCC, já que minhas pesquisas e projetos estão relacionados ao tema da adaptação de cidades para a mudanças climáticas desde meu doutorado, realizado entre 2007 e 2010. Já tinha atuado como autora-líder em relatório de avaliação de conhecimento científico similar ao do IPCC, o Assessment Report on Climate Change and Cities (ARC3.2) da UCCRN – Urban Climate Change Reseach Network. Aplicando metodologia similar à do IPCC, a UCCRN avalia o conhecimento científico existente (ameaças relacionadas à mudança climática, impactos, vulnerabilidade, adaptação e mitigação) sobre cidades, no contexto das mudanças climáticas, o que certamente contou para a minha seleção como coordinating lead author (CLA).
O trabalho dos cientistas, no Painel, é realizar uma avaliação do conhecimento científico e prático sobre os temas de cada grupo, produzido no intervalo transcorrido desde o último relatório, determinando o nível de confiança e probabilidade para cada achado científico principal, considerando a consistência das metodologias aplicadas nas pesquisas, a quantidade de trabalhos realizados sobre um mesmo tema e as principais descobertas, assim como o padrão de convergência ou divergência dos resultados.
Ascom VRAc - Com relação ao sexto relatório, quais são as principais vulnerabilidades e necessidades de adaptação em cidades da América do Sul e Central, em especial no Brasil, considerando o impacto das mudanças climáticas nos ecossistemas e comunidades?
M.F - A principal vulnerabilidade das cidades de todo o sul global se relaciona muito fortemente à desigualdade socioeconômica e à concentração de pobreza nas cidades, com seus extensos assentamentos informais. A desigualdade socioeconômica tem reflexos físico-territoriais nas cidades, incluindo fragmentação territorial, deficiências na distribuição de infraestrutura e investimentos, precariedade na habitação (associada à informalidade e à pobreza), deficiências nos sistemas de transporte, ocupação de áreas com diferentes formas de risco, entre outras.
Esses são aspectos determinantes de um alto grau de vulnerabilidade urbana e social, e as populações desses lugares mais vulneráveis são as mais impactadas por eventos climáticos extremos. Historicamente, essas áreas receberam pouco investimento e têm sua condição de vulnerabilidade mantida por um continuado processo de exclusão e investimento reduzido.
Outra condição de vulnerabilidade muito importante, na região como um todo, se refere à falta de estruturas eficientes e consistentes de governança, em especial no nível local. Falta de transparência, exclusão de grupos nas tomadas de decisão, deficiências nos processos participativos inclusivos, deficiências na comunicação do risco, tudo o que se refere a esse pacote da governança é, em geral, muito frágil nas cidades da América do Sul e Central e, com isso, aumenta a vulnerabilidade das áreas excluídas, inclusive no processo decisório.
Um item importante a ser mencionado é a dificuldade de financiamento para a adaptação, porque a adaptação não é barata, mas, por outro lado, ela se dá tanto em aspectos físicos, como saneamento, transporte, e habitação, quanto em aspectos sociais – informação da população, inclusão dela nos processos decisórios, estruturas para a melhoria das condições de saúde, reforço das redes de colaboração comunitária. Neste sentido, algumas das ações não são custosas, são muito eficientes, e são as mais importantes para adoção em contextos de grande vulnerabilidade, principalmente nos países em desenvolvimento, com menos recursos financeiros.
A adaptação é também uma forma de se investir em capital humano, em desenvolvimento humano de modo geral, então se espera que países e cidades com menos recursos invistam mais nessas soluções não físico-estruturais, que dizem respeito à capacidade adaptativa e não à sensibilidade do sistema. A vulnerabilidade tem dois componentes principais: a sensibilidade se refere às condições do sistema físico-estrutural e a capacidade adaptativa se refere aos aspectos humanos e sociais. Tem mais uma componente de vulnerabilidade – muito importante para regiões de muita desigualdade e informalidade no espaço construído – que se refere a um déficit habitacional expressivo, tanto quantitativo quanto qualitativo. São muitas pessoas em situação de habitação precária, o que constitui um fator de vulnerabilidade muito grande.
Um outro fator importante para o aumento da vulnerabilidade do Brasil, mas que também se repete nos países do sul global – talvez a Índia seja uma exceção – é a pouca produção de conhecimento sobre a adaptação, vulnerabilidade e risco, e sobre as ameaças climáticas e seus possíveis impactos na escala local. A tradução ou a aproximação da informação existente em escala global para o que vai, de fato, acontecer em uma escala local é um trabalho que precisa ser feito. Quando se olha alguns gráficos do IPCC que fazem a comparação entre as regiões do planeta, em alguns deles há uma lacuna de informações na América do Sul e Central porque não há produção.
Em termos de necessidades de adaptação para essa região, há uma carência muito grande na área habitacional. Muitas iniciativas de intervenção existem em áreas informais, inclusive o Rio de Janeiro foi vanguarda neste campo de atuação, na década de 1990, com o Favela-bairro, e outros países da região, como a Colômbia por exemplo, até desenvolveram experiencias interessantes, mas, em geral, as intervenções não estão preocupadas, voltadas e atentas à construção de resiliência ou à adaptação porque não consideram os cenários de mudança climática. Não basta apenas lidar com diagnósticos urbanísticos.
Quando se faz uma intervenção urbana, ainda que muito consistente e importante para a melhoria da qualidade ambiental, das condições de saneamento, acessibilidade etc., se não forem considerados os cenários climáticos, não será adaptação, já que ela pressupõe o projeto ou o planejamento de cenários climáticos futuros – de intensificação ou de mudança de frequência de chuvas, secas, entre outros.
O setor de transporte – outro sistema essencial para as cidades – tem muitas iniciativas de mitigação (ou seja, redução da emissão de gases de efeito estufa) e nenhuma de adaptação, de acordo com o relatório.
Em termos de soluções de infraestrutura, que é outra questão essencial, muito se discute sobre as vantagens de soluções híbridas (articulação da infraestrutura cinza, a tradicional, com a verde), mas há pouquíssimas iniciativas, embora altamente recomendadas pela ciência. A infraestrutura verde tem obtido muito destaque nas cidades, principalmente dos países mais ricos, dada a multiplicidade de ganhos que extrapolam suas funções infraestruturais originais de drenagem e saneamento, tais como melhoria do microclima urbano e melhoria da qualidade da paisagem.
Ascom VRAc - Como esse relatório se integrou aos outros?
M.F - Em todos os relatórios, a equipe busca evidenciar o que mudou em relação ao relatório anterior. No caso da nossa região, infelizmente foram confirmados os impactos já esperados no AR5, bem como o aumento da intensidade dos eventos. Houve alguma evolução em termos de adaptação de cidades, mas a região ainda está muito atrás do que é necessário para reduzir vulnerabilidades.
Ascom VRAc - Qual a diferença do Summary for Policy Makers, também lançado na COP27, para o AR6 do IPCC?
M.F – O SPM é parte o relatório geral. No SPM, são relacionadas apenas as ideias-chave, as mais relevantes, mais críticas para os próximos anos, inclusive as controversas, já que o Summary for Policy Makers é o relatório que os governos aprovam, linha por linha, vírgula por vírgula, em uma sessão de duas semanas do IPCC. O relatório do IPCC é aprovado com base nos principais achados relatados no SPM.
Ascom VRAc - Como você vê a importância do Urbanismo no cumprimento das metas ambientais e como esse trabalho se insere no todo da Universidade?
M.F - O IPCC e o mundo inteiro estão dando muita importância à questão das cidades – onde está mais de a metade da população do planeta –, primeiro porque há uma emissão de gases de efeito estufa expressiva nas cidades, segundo porque o estilo de vida urbano é que dita o padrão de consumo das pessoas, que está muito relacionado à forma com que lidam com os recursos naturais e com a forma como lidam com a proteção das pessoas vulneráveis frente às mudanças climáticas. É nas cidades, ainda, que se produz a maior parte das soluções para as mudanças climáticas, dada, principalmente, a presença dos grandes centros de pesquisa. As cidades são parte do problema e parte da solução.
Em termos da Arquitetura e do Urbanismo, a forma das cidades é também responsável pela quantidade de energia consumida, pela segurança estrutural das habitações, pela relação entre disponibilidade de recursos e seu consumo. Resumidamente, a forma da cidade determina, em grande parte, a emissão dos gases de efeito estufa, o nível de consumo dos recursos naturais, a segurança física em relação a eventos climáticos. Embora isso pareça trivial, não é, sem contar que se está falando de infraestrutura. O papel do urbanismo na preparação da sociedade para o enfrentamento da mudança climática é enorme e com múltiplas relações.