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Vice-reitoria para Assuntos Acadêmicos

Pesquisa, Desenvolvimento e Extensão

Por Renata Ratton Assessora de Comunicação - Vice-Reitoria para Assuntos Acadêmicos
Filósofo alemão de renome mundial Markus Gabriel, da Universidade de Bonn, estreita intercâmbio acadêmico e científico com a Filosofia
Cooperação de pesquisa com o professor Paulo Cesar Duque Estrada, que já dura três anos, envolve discussões sobre afinidades e divergências entre o novo realismo e a desconstrução

Os filósofos Markus Gabriel e Paulo Cesar Duque Estrada, durante o encontro Fantasmagorias: intercâmbio científico e acadêmico - fotos: Isabella Lacerda - Projeto Comunicar

Um dos mais renomados filósofos do novo realismo, o professor da Universidade de Bonn Markus Gabriel vem estreitando, cada vez mais, a cooperação em pesquisa com o Departamento de Filosofia da PUC-Rio, por intermédio do professor Paulo Cesar Duque Estrada, também Coordenador Central de Pós-Graduação e Pesquisa. Está em processo a confecção de um convênio entre os departamentos de filosofia das duas instituições.

À frente do Centro Internacional de Filosofia e do Centro para Ciência e Pensamento daquela Universidade, = Gabriel é autor de best-sellers como O Sentido de Existir (Civilização Brasileira, 2016) e Porque o Mundo Não Existe (Vozes, 2016).

Segundo Paulo Cesar, que já esteve na Universidade de Bonn como palestrante convidado, o intercâmbio tem sido extremamente enriquecedor e envolve alunos e professores. Durante o penúltimo encontro, em 2016, os filósofos conversaram sobre vários pontos de proximidade e diferença entre o novo realismo e a desconstrução, uma das áreas de estudo de Paulo Cesar, comprometendo-se a trabalhar um pouco mais a relação entre as duas formas de pensamento no ano seguinte.

Em dezembro de 2017, Gabriel esteve na PUC-Rio ministrando o minicurso Ficções: arte, espírito, sociedade, participou de um debate sobre Fins do homem e transhumanismo, que também teve a participação do professor Jimmy Casas Klausen, do Instituto de Relações Internacionais (IRI), e dividiu com o professor Paulo Cesar o encontro Fantasmagorias, onde abordaram o problema da relação com a realidade a partir do paradigma pós-moderno de que “tudo é interpretação”.

Para o professor Paulo Cesar, a ideia não é propriamente a de estabelecer comparações. “Trata-se de duas formas de pensamento distintas, com influências, motivações e orientações distintas. No entanto, há uma série de temas e questões que são atravessados por ambas. Muitas vezes, ou quase sempre, o que parece ser uma afinidade se mostra como uma profunda oposição, mas é exatamente esse contraste, quando não se quer chegar à tola conclusão sobre quem está certo ou errado, que permite um debate filosófico instigante e enriquecedor”.

Em entrevista à assessoria de comunicação da Vice-Reitoria para Assuntos Acadêmicos, Paulo Cesar esclarece aspectos de ambas as correntes e fala sobre a parceria em pesquisa.

O que é o novo realismo?

Como o próprio Markus Gabriel diz, o novo realismo combina dois princípios: um primeiro princípio, que ele compartilha com o realismo filosófico tradicional, segundo o qual pode-se ter acesso – ou seja, pode-se conhecer – as coisas tais como elas são; e um segundo princípio, específico do novo realismo, segundo o qual as coisas mesmas, tais como elas são, não pertencem a um único domínio a que chamamos “mundo”. Aliás, para o novo realismo, o mundo não existe.

Poderia esclarecer melhor esse conceito?

Tradicionalmente, e habitualmente, pensa-se, ou supõe-se, a existência de uma realidade “lá fora”, e que todas as coisas que existem pertencem a ela. Essa realidade seria o mundo, tudo o que existe se encontra no mundo, são coisas do mundo. Entretanto, será que alguém já viu essa totalidade chamada “mundo”, à qual pertencem todas as coisas que existem? A resposta é não. É possível um conceito que compreenda essa totalidade? Também não. Pelo menos desde Kant (1724-1804), para quem o mundo existe, sim, mas como uma ideia que é posta pela “razão pura”- isto é, não pela razão baseada na experiência que temos das coisas; o mundo é, portanto, uma ideia que trazemos conosco a priori; não se deve confundir com uma ideia no sentido psicológico do termo. A ideia do mundo seria uma condição absolutamente necessária ao pensamento humano, pois nela está pressuposta a existência de um âmbito de ordem e de leis que fundamenta todos os objetos do conhecimento. O problema que, desde então, de um modo mais explícito, veio se apresentando na filosofia é esse: a existência do mundo afirmada como ideia abre, em tese, a possibilidade de uma filosofia sem mundo. O novo realismo se inscreve nesta possibilidade.

Como se dá a inexistência do mundo para o novo realismo?

O novo realismo significa realismo sem mundo, na definição do próprio Gabriel. O realismo tradicional, ainda dependente do conceito de mundo, reduz as coisas a uma instância dogmaticamente estabelecida, que é o “mundo”. Para o novo realismo, livrar-se da ilusão da existência dessa totalidade chamada “mundo” é fundamental para que se possa apreender as coisas em sua realidade mesma. Trata-se de uma proposta de lidar com as incontáveis categorias distintas de coisas (números, pessoas, objetos de conhecimento, tempo, espaço, acontecimentos, cultura, instituições etc.) sem reduzi-las a uma entidade unificadora, totalizante, afirmada dogmaticamente por ser inexistente. É assim que a clássica pretensão da filosofia, de “pensar o todo”, é rejeitada; não porque, de agora em diante, devamos pensar apenas as “partes” do todo. Não há partes do todo, simplesmente porque o todo não existe. O que existe são as coisas, não o mundo. Em outro modo de dizer, em oposição ao que se chama de pós-modernismo, o que existe realmente são os fatos, eles não são invenções de uma ou outra forma de interpretação. Há, aqui, a defesa de um pluralismo: as coisas existem em infinitos diferentes domínios, e unifica-las é impossível. Impossível, não porque a nossa razão seja limitada, mas porque não existe uma totalidade unificadora. Há também uma outra maneira de pensar o que significa existir: as coisas existem em infinitos diferentes domínios de existência. Melhor dizendo, existir é aparecer em um “campo de sentido”. Um exemplo rápido e simples: a PUC é um campo de sentido, nela aparecem salas de aula, corredores, a reitoria, os centros acadêmicos etc. No campo de sentido Gávea, a PUC aparece assim como as ruas, lojas, associação de moradores etc.

Poderia falar um pouco sobre os pontos de afinidade e de divergência entre novo realismo e a sua área de pesquisa, a desconstrução, que resultaram nos avanços da cooperação científica entre as duas instituições, bem como no encontro Fantasmagorias?

Como o novo realismo, a desconstrução pretende libertar as coisas de todo reducionismo a alguma entidade totalizante, muitas vezes totalitária, postulada dogmaticamente. Como o novo realismo, a desconstrução é atenta à coexistência de incontáveis modos de existir de uma mesma coisa (uma mesma pessoa, instituição, cultura, acontecimento comporta muitos modos diferentes de existir). Como o novo realismo, a desconstrução pretende fazer justiça às diferenças e, consequentemente, ao democrático, em sentido amplo. O novo realismo, no entanto, pretende fazer justiça às coisas por meio, eu diria, de uma perspectiva epistemológica, afirmando a possibilidade de elas serem conhecidas tais como são em seus diferentes níveis de realidade. É uma defesa dos fatos contra o que seria uma “lógica pós-moderna”, segundo a qual não há fatos, apenas interpretações. “De volta aos fatos”, poderia ser o seu lema. Para a desconstrução, no entanto, a libertação das coisas não termina em um ato de conhecimento. Aliás, não termina em nenhum ato de qualquer espécie. A libertação é um processo sem fim porque cada coisa singular é algo infinito. É do devir de que trata a desconstrução, e não das formas de acesso às coisas tais como são. Para a desconstrução, aliás, nada se mostra “tal como é”. Há um “por-se-em-marcha” em tudo, assim como promessa e espera. Próximo e distante da desconstrução, o novo realismo aponta para a possibilidade de se reafirmar o "humano" para além da alternativa entre, de um lado, a visão naturalista e, de outro, o pensamento especulativo. Foi por meio dessa "proximidade distante" que surgiu esse rico e promissor diálogo com o professor Gabriel.




Publicada em: 28/02/2018