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Vice-reitoria para Assuntos Acadêmicos

Pesquisa, Desenvolvimento e Extensão

Por Renata Ratton Assessora de Comunicação - Vice-Reitoria para Assuntos Acadêmicos
Precisos e perversos
Pesquisa do Instituto de Relações Internacionais busca entender como dados estatísticos podem ser, ao mesmo tempo, essenciais e cruéis, na lógica contemporânea

Legenda da foto:A professora Isabel de Siqueira, do IRI: pesquisa busca entender, entre outras questões, em que medida as estatísticas comprometem a empatia e a solidariedade - crédito: arquivo pessoal

A relação entre a pós-verdade – quando fatos têm menos poder do que crenças –, as estatísticas e a solidariedade é tema da nova linha de pesquisa conduzida no Instituto de Relações Internacionais pela professora Isabel Rocha de Siqueira.

A pesquisa toma como premissa a dificuldade de se promover a solidariedade em uma sociedade altamente quantificada, em que os números parecem dar conta de tudo o que é necessário saber sobre uma determinada realidade social, ao mesmo tempo em que perdem completamente o seu valor ante fatos fabricados sob medida, muito utilizados no marketing político, por exemplo.

- Hoje, os dados numéricos têm que chegar rápido, redondos, prontos para a visualização. As pessoas vão consumi-los e esquecer deles rapidamente. Essa informação rápida está banalizada, superficial, e é fruto de uma sociedade que se quantifica cada vez mais, seja por meio dos dados estatísticos, seja por meio de algoritmos de busca. Minha hipótese de pesquisa é a de que, nesse cenário, a solidariedade está desaparecendo - coloca Isabel.

“É parte fundamental da solidariedade conhecer o outro. Só que não o conhecemos plenamente quando toda a verdade a que temos acesso são dados, e não uma história, uma música, uma manifestação cultural. Não temos contato com o outro, lemos sobre ele da forma mais fria possível. Não se trata apenas da estatística, mas do tipo de sociedade que a quantificação ajuda a gerar, uma sociedade que é pouco tolerante com divagações ou subjetividade, com romanticismo, com arte ou com qualquer coisa que demore demais”, assinala.

Por outro lado, a professora destaca a febre de análise de sentimentos, em que marqueteiros, a partir de pesquisas, softwares e algoritmos, verificam exatamente no que seu público-alvo está disposto a acreditar, produzindo as verdades em cima disso. “Às vezes um número pode nem estar errado, mas, sim, a forma como é abordado, o que se esconde e o que se permite ver. Essa discussão para mim é fascinante porque, de certa forma, a ciência parece ter criado o seu próprio monstro. Ela conferiu tanta autoridade aos números, que, agora, mesmo quando eles não dizem nada, ou quando dizem uma verdade política extremamente cruel, têm mais autoridade do que aquela verdade que podemos ver na frente das nossas casas”, observa a professora. Para Isabel, a pós-verdade não se trata, em absoluto, de um fato novo, mas está alcançando uma magnitude nunca antes vista no mundo informatizado, em que a informação caminha muito rápido.

O eixo da pesquisa se propõe a entender o papel da quantificação em políticas públicas, por que esses números têm tanta autoridade, por que se acredita tanto neles e por que, por outro lado, não se acredita quando não se quer acreditar. Isabel toma, como estudo de caso, o programa Bolsa Família, do governo federal.

- Com base na quantificação e nos fatos alternativos, comecei a pensar no impacto disso sobre a solidariedade, a vida em comunidade, os laços humanos e afetivos. O exemplo que me veio em mente para trabalhar foi o do programa Bolsa Família. Se conversarmos com as pessoas que trabalharam desde o início no programa, no Ministério do Desenvolvimento, verificaremos que há dezenas de pesquisas (dentro e fora do Brasil) falando sobre os pontos positivos do programa. Por mais que se pense que uma ou outra pesquisa possa ter sido produzida por um grupo com viés político supostamente alinhado com os criadores do Bolsa Família, é impossível que todas as pesquisas produzidas por tantos grupos diferentes tenham chegado aos mesmos resultados com interesses obscuros. Há pesquisas mostrando que quanto maior o contato com os beneficiários do programa, mais aberto o pesquisador estará para absorver resultados positivos como verdade. Entretanto, sem esse contato, uma enxurrada de números poderá não ser suficiente para provar os benefícios. E isso é algo muito mais sutil do que simplesmente escolher não acreditar - explica.A análise do Bolsa Família será feita em diferentes etapas, em função de seus impactos em relação a políticas pré-existentes e ideologias, mas acima de tudo para verificar as diferenças entre as opiniões de quem tem um mínimo contato social com os beneficiários e de quem não tem.

- Penso que, nesse mundo quantificado de pós-verdades e fatos alternativos, para se conseguir formular, comunicar, monitorar e avaliar políticas sociais inclusivas polêmicas, como o Bolsa Família, cada vez mais será necessário ir além da ciência dos dados, buscando algo que supra a falta do contato humano. A ciência e a vivência, coloca a professora. Para tanto, adota, em seu trabalho, o conceito de objetividade robusta da filósofa Sandra Harding, que preconiza uma dose a mais da perspectiva dos marginalizados e das populações vulneráveis para que a objetividade seja ‘mais objetiva’ precisamente por ser justa em uma sociedade extremamente desigual.

“Tendemos a achar que trazer a perspectiva para a ciência diminui o valor de sua objetividade, pela necessidade da neutralidade. Nesses casos, isso não é verdade. É necessário, sim, fazer uma ciência orientada, enviesada para aqueles que mais precisam”, observa Isabel. Utilizando a perspectiva da objetividade robusta, a professora buscará entender que tipo de políticas públicas se pode formular ou comunicar, e como se pode incentivar a solidariedade para a inclusão, frente a um retrocesso global no combate à desigualdade. A pesquisa tem uma proposta acadêmica, científica, mas também fortemente política.

Graduada em jornalismo pela PUC-Rio, Isabel Rocha de Siqueira trabalhou na agência espanhola de notícias (EFE), realizou mestrado de relações internacionais no IRI, e doutorado pleno no King´s College London. O livro Managing State Fragility – Conflict, Quantification and Power, publicado pela editora inglesa Routledge dentro da série Liberty and Security, foi fruto de sua tese de doutorado.

Este livro examina a gestão da fragilidade e as práticas e impactos da quantificação sobre as relações de poder na política internacional, e é qualificado como de grande interesse para os estudantes de segurança crítica, sociologia política internacional, estudos de desenvolvimento e Relações Internacionais em geral.Isabel Rocha de Siqueira é docente da Universidade desde março 2015, na área de Economia e Política Internacional, com foco em Desenvolvimento Internacional.




Publicada em: 17/08/2017