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Trabalho de Antonio Pele, da PUC-Rio, e de Francisco Ortega, do ICREA, aborda trajetória e desafios do Sistema Único de Saúde, o SUS

Brazil’s unified health system: 35 years and future challenges, artigo de autoria de Antonio Pele, docente do departamento e do Programa de Pós-graduação em Direito, e do pesquisador Francisco Ortega, da Instituição Catalã de Pesquisas e Estudos Avançados (ICREA) e da Universidade Rovira i Virgili de Tarragona, acaba de ser publicado na The Lancet Regional Health - Americas, considerada uma das melhores revistas científicas do mundo em saúde pública.
No 35º aniversário da atual Constituição do Brasil (1988), onde a saúde foi definida como direito universal e responsabilidade do Estado, o trabalho aborda méritos, percalços e aspectos desafiadores para a reconstrução do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), principal política pública de inclusão social e uma das mais poderosas ferramentas para redução de desigualdades no país.
Ancorado em bases estatísticas consistentes, o artigo remonta às origens da instalação do SUS, a partir da Lei de Saúde de 1990, com foco em seu modelo de atenção básica: a Estratégia de Saúde na Família (ESF). A ESF é o maior programa comunitário de Atenção Primária à Saúde (APS) do mundo, e cobre aproximadamente 60% da população brasileira (131,2 milhões de pessoas) nos níveis secundário e terciário. Segundo os autores, apesar das disparidades persistentes entre regiões geográficas e grupos de rendimento, o SUS conseguiu melhorar a equidade na saúde e proporcionar acesso a cuidados de saúde abrangentes. De 2000 a 2014, por exemplo, o gasto total com saúde passou de 7,0% para 8,3% do PIB e a cobertura da população com ESF passou de 7,6% para 58,2%.
O artigo ainda enfatiza a drástica melhora dos resultados de saúde desde a implementação do sistema, com a mortalidade infantil diminuindo em dois terços entre 1990 e 2015, a esperança de vida caminhando de 66,9 anos para 74,3 anos, no mesmo período, e o fornecimento gratuito de medicamentos aumentando de 27,2%, em 1998, para 46% em 2008. Já entre 1999 e 2007, aponta que as hospitalizações evitáveis diminuíram 20%, juntamente com a expansão da cobertura dos centros de saúde popular (CSPs). A cobertura vacinal também foi digna de nota: a vacinação contra a tuberculose (BCG) passou de 79% em 1990 para 99% em 2015, o sarampo de 78% para 96%, a poliomielite de 58% para 98% e a DTaP de 66% para 96% no mesmo período. O artigo destaca ainda a importância histórica do programa brasileiro contra a AIDS, elogiado internacionalmente pelo notável progresso no acesso a antirretrovirais e na introdução de programas inovadores de prevenção de base. O SUS liderou ainda diferentes estratégias de regulação de medicamentos e aumentou sua disponibilidade.
Desmonte – Nas décadas mais recentes, entretanto, o trabalho destaca o forte abalo sofrido pelo Sistema Único de Saúde por conta das reformas neoliberais defendidas pelo Banco Mundial, que criticava a garantia constitucional de assistência integral à saúde para todos os brasileiros e incentivava a participação do setor privado na prestação de serviços. As reformas resultaram no aumento das desigualdades geográficas, no financiamento insuficiente e na colaboração público-privada ineficiente.
Segundo os autores, a governança da saúde pública nos governos anteriores foi baseada no clientelismo político, nos interesses de privatização do mercado, na adoção de políticas de austeridade fiscal de longo prazo, no aprofundamento dos processos de privatização e na retirada de financiamento. A emenda constitucional EC 95/2016, aprovada em dezembro de 2016, restringiu o crescimento dos gastos públicos até 2036 e resultou em um prejuízo de R$ 743 bilhões (US$ 148,6 bilhões) para o SUS em 20 anos.
De acordo com o artigo, retrocessos na atenção primária à saúde envolveram reestruturação da administração pública, flexibilização das leis trabalhistas, ruptura da participação social e privatização da assistência e da gestão. A saúde mental e a saúde dos povos indígenas, bem como o programa de HIV, sofreram sob a administração de Bolsonaro, e foi constatada sensível piora na saúde pública: a vacinação infantil diminuiu de 93,1% em 2019 para 71,5% em 2021.10 A mortalidade materna aumentou de 58 mortes por 100.000 nados-vivos em 2019 para 107 em 2021,9 desnutrição infantil levou a um aumento de 11% no número de hospitalizações. Já o pessoal técnico foi substituído por militares e a evidência científica por crenças religiosas e ideológicas, com impacto direto nas cerca de 700.000 mortes causadas pela pandemia e no lento percurso de vacinação contra a COVID-19.
Futuro – Para Pele e Ortega, a reconstrução do SUS, após tamanhos reveses, é uma prioridade e um enorme desafio para o atual governo, frente à alarmante deterioração dos indicadores de saúde. Entre os principais desafios para atual gestão, eles citam a expansão progressiva de recursos em conjunto com estratégias para sua alocação eficiente, assim como o combate às desigualdades regionais por meio de novos mecanismos de governação. O reestabelecimento e o fortalecimento da atenção primária à saúde como modelo de atenção primária integral, resolutivo, territorial e comunitário integrado à rede regionalizada do SUS é mais um dos aspectos salientados, juntamente como combate à escassez de médicos e a regulação do mercado de saúde de forma a evitar tratamentos caros impostos pela judicialização da saúde. Além disso, os autores entendem que a participação e o controle social, características fundamentais do SUS, devem ser restabelecidos e fortalecidos, assim como a liderança brasileira na saúde global, relançando a cooperação com o sul global.
O artigo Brazil’s unified health system: 35 years and future challenges pode ser acessado em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2667193X23002053
Sobre o professor Antonio Pele:
O professor Antonio Pele publica em revistas de alto impacto como Tempo Social; Direito e Praxis; Philosophy and Social Criticism; Law, Culture and the Humanities; Studies in Law, Politics and Society. Especialista na Inteligência Artificial no campo da regulamentação, especialmente no relacionado com a saúde digital. É autor do livro L’Intelligence Artificielle: Sommes-nous prêts? – 2024 (A Inteligência Artificial: estamos preparados? inédito em português. Desenvolve projeto sobre Dignidade Humana, Saúde planetária e Novas Tecnologias (Human Dignity, Planetary Health and New Technologies), em parceria com a Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS) Paris, e é também coeditor da revista Direito, Estado e Sociedade do PPGD-PUC-Rio.