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Vice-reitoria para Assuntos Acadêmicos

Pesquisa, Desenvolvimento e Extensão

Por Renata Ratton Assessora de Comunicação - Vice-Reitoria para Assuntos Acadêmicos
Para além da evangelização

Estudo financiado pelo Jovem Cientista do Nosso Estado vai investigar nomes, trajetórias, experiências e escolhas de padres operários estrangeiros, no período da ditadura militar


Financiado pela bolsa de produtividade do CNPq desde 2021, e recentemente contemplado pelo edital Jovem Cientista do Nosso Estado, o projeto Entre a batina e a linha de montagem: a atuação de padres operários estrangeiros durante a ditadura militar brasileira surgiu da experiência como pesquisadora visitante da professora Larissa Rosa Correa, do Departamento de História, na Universidade de Leuven, Bélgica, em 2018, com bolsa do Coimbra Group Scholarship.

No arquivo KADOC, especializado em preservar documentos históricos sobre os movimentos sociais católicos no mundo (https://kadoc.kuleuven.be/english), Larissa teve a oportunidade de pesquisar documentos  sobre as relações entre as organizações internacionais católicas e o movimento sindical brasileiro, conhecendo, assim, a ações da JOC, da Ação Católica Operária (ACO), da Confederação Internacional dos Trabalhadores Cristãos (CISC), do Movimento Mundial de Operários Católicos, além de outras organizações. “Nesse conjunto documental, pude perceber a atuação dos chamados padres operários belgas durante a ditadura militar brasileira. Como sou estudiosa da história do trabalho no período da ditadura militar, a presença dos padres operários imediatamente me chamou a atenção. Logo notei que pouco se escreveu sobre eles na historiografia sobre o regime militar”, observa a professora. Desde então, Larissa decidiu desenvolver uma pesquisa que buscasse analisar as relações entre a Igreja Católica, os trabalhadores e o regime militar, no contexto das disputas político-ideológicas travadas durante a Guerra Fria, entre 1964 e o final da década de 1970. Segundo a professora, a ideia era investigar a atuação dos chamados padres operários, vinculados aos setores mais progressistas da Igreja Católica e identificados pelas suas ações de oposição à ditadura.

– Durante a primeira metade da década de 1960, há um movimento expressivo de padres, a maioria de estrangeiros particularmente oriundos da França, Itália e Bélgica, comprometidos com a questão social, que se estabelecem em diferentes regiões carentes do país. Pretende-se analisar a atuação dos padres operários na região da Baixada Fluminense e do município de Volta Redonda, localizado na região sul fluminense do estado do Rio de Janeiro, nas áreas consideradas periféricas do cinturão industrial de São Paulo (Osasco e Guarulhos) e nos arredores da cidade de Recife, Pernambuco, informa a pesquisadora, complementando:

Recorte do Diário de Notícias, no álbum da visita de Augusto Cool, liderança sindical belga dos sindicatos democratas cristãos, feito pela Confederação Nacional dos Círculos Operários, março de 1964 - Arquivo Kadoc/ KU Leuven
Visita de Augusto Cool, liderança sindical belga dos sindicatos democratas cristãos, com representantes do círculo operário católico, entre eles, padre Pedro Belisário Velloso Rebello S.J., março de 1964 - Arquivo Kadoc/ KU Leuven
Encontro entre eclesiásticos durante a visita de Augusto Cool, liderança sindical belga dos sindicatos democratas cristãos, março de 1964 - Arquivo Kadoc/ KU Leuven
Recorte de revista sobre as denúncias de violações aos direitos humanos no Brasil feitas por Dom Helder Câmara em sua viagem à Europa - Arquivo Kadoc/ KU Leuven

– Embora possamos identificar em nossa historiografia uma larga produção sobre a Teologia da Libertação e sua relação com os movimentos sociais, ainda não temos uma história do papel dos padres-operários no Brasil analisada de forma sistemática e em profundidade. Neste sentido, buscamos compreender o perfil desses padres, como eles se relacionavam com os trabalhadores e as comunidades católicas da região, suas conexões internacionais, o impacto de suas atividades, e como foram alvo do aparato repressivo do Estado autoritário. Para tanto, serão pesquisados os arquivos da repressão, sobretudo os da polícia política (Dops/ Deops) de cada região e do Sistema Nacional de Informação (SNI), arquivos das organizações católicas e sindicais na França e Bélgica, entre outros acervos internacionais, periódicos, documentos oriundos das comunidades eclesiásticas e de organizações clandestinas de combate à ditadura militar. Entre as trajetórias analisadas, Larissa cita as dos padres José Mahon e Bernard Hervy, a do ex-seminarista belga Conrad Detrez, e a do sacerdote belga e doutor em Física pela Universidade Católica de Louvaina, Jan Talpe.

Mahon – Foi no início da década de 1960 que o padre José Mahon, vindo da França, se instalou em Santo André, região industrial da grande São Paulo. Veio ao Brasil por meio de um projeto de evangelização das periferias de grandes cidades conduzido pela organização religiosa francesa Filhos de Caridade. Alguns anos depois, Mahon buscava não ser reconhecido pelos trabalhadores de uma fábrica em São Bernardo do Campo, mas não logrou sucesso. Seu “disfarce” rapidamente seria revelado pelos operários, que vez ou outra perguntavam: “Mas não foi o senhor que casou a minha filha, padre? O que está fazendo aqui?”. Conforme o seu obituário, Mahon fazia parte de um dos primeiros grupos de padres operários do Brasil. Nascido em 1926, em Roubaix, na França, ele havia fugido junto com a família para a região da Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial. Tornou-se seminarista anos mais tarde. Às vésperas do golpe de 1964, Mahon recusou-se a integrar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade – movimento de caráter político e religioso conservador antigoularista; na sequência, testemunhou a execução do plano conspiratório civil e militar que retirou João Goulart da presidência, escondeu perseguidos políticos e teve algumas passagens pela prisão. Morreu aos 91 anos, na França, no dia 15 de maio de 2018.

Hervy – O padre operário francês Bernard Hervy, nascido em 1929, era conhecido como “padre Bernardo” pelos trabalhadores do ABC paulista, e chegou ao Brasil em 1966, já em plena vigência do regime militar. Tornou-se rapidamente um militante político de oposição à ditadura, tendo sido preso certa vez por estar de posse de um panfleto sindical. Padre Bernardo participou das greves do “novo sindicalismo” e da criação da Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acabt Brasil). Talpe – O belga Jan Talpe chegou ao Brasil em 1965, por meio do contato com o arcebispo de São Paulo, Don Agnelo Rossi. Aderiu à Ação Popular (AP) e à JOC, tendo atuado como padre operário em Osasco, região metropolitana e industrial de São Paulo, e participado da greve dos metalúrgicos de Osasco em 1968. Era também docente da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Vigiado pelo Deops, ficou preso durante seis meses até ter sido expulso do país em 1969. Anistiado político, Talpe teve sua anistia recentemente cassada pelo governo Temer, que alegou o fato de o ex-perseguido político não ter cidadania brasileira naquele período.

Detrez – Apesar de não ter sido um padre operário, a trajetória do ex-seminarista e escritor belga Conrad Detrez é representativa deste movimento de imigração de eclesiais belgas para o Brasil no início dos anos 1960. Ele veio da Bélgica para o Brasil no ano de 1962, com 25 anos, após ter interrompido seus estudos de seminarista na Universidade de Louvaina. Instalou-se na cidade de Volta Redonda, polo da indústria siderúrgica, e depois se mudou para o Rio de Janeiro. Trabalhou como auxiliar leigo nas favelas e foi professor na Universidade Santa Úrsula. Detrez não se encantava com a turística e “mundana” Copacabana, dizia preferir a “feiura” da zona norte, pois era lá onde ele conhecia as “pessoas de caráter”. Ele tinha fascínio pela cultura negra e o candomblé. Detrez transitava entre a cultura popular e o meio intelectualizado da zona sul carioca. Acabou revelando sua homossexualidade, projetada no desejo pelos homens negros, ao mesmo tempo em que aflorou o talento para ser escritor.

O golpe civil-militar de 1964 foi um evento divisor para a trajetória de Detrez no Brasil, transformou-se de escritor laureado à militante opositor da ditadura militar. Apesar de militar na Ação Popular, o ex-seminarista belga não nutria simpatia pelo comunismo, embora admirasse Che Guevara e Fidel Castro. Detrez foi preso em 1967, tendo seu encarceramento noticiado pela grande imprensa. Ele deixou o país discretamente rumo à França, após ter sido liberado pelo Dops por meio da intervenção da embaixada belga no Brasil. Voltou ao Brasil um ano depois, já com as marcas do “Maio” francês. Estabeleceu-se em São Paulo, mas vivia com a polícia política em seu encalço. Ainda assim conseguiu entrevistar Carlos Marighella, líder da organização clandestina Vanguarda Popular Revolucionária, pouco antes de o guerrilheiro ser assassinado. Fora do Brasil, Detrez fazia parte de uma rede de solidariedade para exilados políticos brasileiros.

– Mas o que Mahon, Bernardo, Talpe e Detrez tinham em comum? Suas trajetórias biográficas sugerem que um conjunto de experiências semelhantes foi compartilhado entre padres estrangeiros que chegaram ao Brasil com a missão de evangelizar as comunidades carentes e ao mesmo tempo vivenciar os mundos do trabalho. Embora instalados em regiões diferentes, podemos inferir que esses padres passaram por grandes transformações sociais e culturais quando decidiram se aventurar pela então “exótica” América do Sul, indaga a professora. Para Larissa, aprender uma nova língua, a cultura e seus códigos locais, adaptar-se às mazelas de um país tropical “subdesenvolvido”, compreender o jogo da política nacional e seu sistema, o funcionamento das hierarquias eclesiais locais, participar e ajudar a formar uma rede comunitária católica, a decisão pela proletarização são apenas algumas experiências que se imagina comuns aos padres operários.

– Quantos padres operários teriam atuado no Brasil durante o período da ditadura militar? Como podemos compreender suas experiências, suas ideias, as relações que travaram com os trabalhadores e as comunidades católicas locais? De que forma o aparato repressivo os vigiou e os reprimiu? Quais foram as regiões onde eles mais atuaram e como se deram as relações entre eles e as altas hierarquias da Igreja Católica? E, por fim, qual foi o impacto da atuação desses padres operários? A estas e outras perguntas o projeto financiado pelo Jovem Cientista de Nosso Estado procurará responder.




Publicada em: 24/03/2022